Prato de alimento e prato de suplemento
Estou a escrever este editorial num dia, para mim, muito especial: a véspera do meu primeiro dia de aposentado. E como a minha inteligência natural já está um pouco desgastada, incluí umas ajudas de inteligência artificial! Afinal, aposentados ou não, essa inteligência está aí e veio para ficar. Aproveitemo-la.
Se me perguntarem assim: em que trabalhaste? Eu tenho de responder que trabalhei na área alimentar, um pouco como consultor técnico, um pouco como cientista e muito como professor. E depois tenho de explicar o que é isso da área alimentar, porque não é culinária, nem é engenharia. É algo muito complexo, que se relaciona com a capacidade de colocar os produtos alimentares à nossa disposição, bem conservados, seguros e apetecíveis.
Vivemos uma época [pouco] interessante, pulverizada com "lixo informativo". A época em que quem tiver a capacidade de contar uma boa história, pode, facilmente, virar líder de milhões de fanáticos seguidores. Veja-se em que resultou o artigo fraudulento de Andrew Wakefield, que sugeria uma ligação entre o autismo e a vacina tríplice, publicado no The Lancet em 1998. Foi prontamente retratado [1], mas os seguidores ficaram, e são muitos e com impacto na sociedade. Se a história for fraca, mesmo assim terá seguidores. Vejam-se as teorias sobre a Terra plana de Samuel Rowbotham (Parallax) no livro "Zetetic Astronomy: Earth Not a Globe" (1881), seguidas por Charles K. Johnson (1924–2001), presidente da Flat Earth Society, e na corrente online de Mark Sargent e outros, com documentários e vídeos no Youtube promovendo essas ideias, frequentemente ligadas a teorias da conspiração. Enfim, uma história fraca, com seguidores, mas pouco representativos, felizmente.
A indústria alimentar também tem de lidar com estas questões. Não tão dramáticas, na maioria dos casos, mas enfrenta desafios para se adaptar às novas preferências dos consumidores. Preferências, algumas, motivadas por alergias ou intolerâncias, e muitas motivadas por modas ou histórias. Por exemplo, as empresas de laticínios precisam de diversificar os seus produtos, incluindo opções como "leite" de amêndoa ou "iogurte" de arroz. Do mesmo modo, as indústrias de carnes tentam criar alternativas como "fiambre de soja", "alheiras" vegetais, etc. Numa simples visita a um supermercado, facilmente encontramos "queijos" vegetais feitos a partir de castanha de caju, amêndoas ou batatas; "ovos" confeccionados à base de proteína de ervilha, grão-de-bico ou feijão; "salmão" ou "atum" com origem em extractos de plantas, algas e leguminosas; para além das já muito conhecidas e amplamente consumidas margarinas e cremes alternativos à base de múltiplas matérias primas. Depois há as massas enriquecidas, que passaram a massas leguminosas à base de lentilhas, grão-de-bico ou ervilhas, com mais proteínas e fibras do que as versões tradicionais, os snacks de grãos integrais e proteínas vegetais, etc., etc…
Nos dias que correm, os consumidores esqueceram- se que os animais são classificados essencialmente como hervíboros, carníveros e omnívoros, sendo que a espécie humana pertence à última categoria. Há quem queira transformar-nos em insectívoros e graníveros, e talvez até detritívoros. Possivelmente até não virá daí grande mal ao mundo. Mas as deficiências alimentares, novos tipos de alergias e intolerâncias, bem como problemas de toxicologia vão estar presentes. Por isso, aos alimentos industriais já não basta serem seguros, com longo tempo de prateleira e apetecíveis. Têm de ter em linha de conta a necessidade de garantir uma dimensão muito importante: que nos aportem os nutrientes de que necessitamos e afastem as substâncias nocivas.
Estamos no tempo em que a indústria alimentar tem de se reinventar, e possivelmente vai ter de estar a fazê-lo como uma actividade do dia-a-dia. Será sempre importante ler-se um pouco de Kaplan e Norton, nos seus artigos sobre Balanced Scorecard publicados na revista Harvard Business Review [2]: um dos quatro sustentáculos das empresas é a sua capacidade de aprendizagem e inovação. As universidades terão de incorporar estas dimensões, criar fornações atractivas na área alimentar, para captar bons alunos e formar grandes profissionais com capacidade adaptativa e espírito criativo, alicerçados em fortes bases tecnológicas, da ciência alimentar e da nutrição.
Há uns tempos atrás, uma refeição tinha prato de peixe e prato de carne. Hoje, com tantas deficiências nutricionais expectáveis, estamos a entrar na fase do prato de alimento e prato de suplemento. Mas é o futuro, e Deus nos livre de histórias bem contadas! E já agora, em jeito de nota final, tenha-se presente que a inteligência artificial também pulveriza muito "lixo informativo". É uma ajuda, é certo, mas não dispensa a inteligência natural.
[1] https://www.thelancet.com/pdfs/journals/ lancet/PIIS0140-6736(97)11096-0.pdf
[2] https://hbr.org/1992/01/the-balanced-sco
Diretor da TecnoAlimentar
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